Sobre a desconsideração da personalidade jurídica

Daniela Vasconcellos Gomes (OAB/RS 58.090)

A pessoa jurídica pode ser definida como o conjunto de pessoas ou de bens que tem por objetivo a consecução de determinados fins, dotado de existência, patrimônio e personalidade jurídica próprios. Nesse sentido, era claro o Código Civil de 1916, ao estabelecer em seu artigo 20: “as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”. O Código Civil de 2002 não traz referência expressa ao assunto, mas em nada modificou a natureza jurídica do instituto.

São várias as teorias que tentam explicar a natureza da pessoa jurídica. Fazem-no sob diferentes argumentos, mas todas possuem um ponto em comum: reconhecem que a pessoa jurídica é uma criação legal, e como tal, deve servir de instrumento para o alcance de certos interesses, de certas necessidades do ser humano.

Das teorias que buscam esclarecer o tema, a que mais se destaca atualmente é a teoria da realidade das instituições jurídicas, pela qual a personalidade da pessoa jurídica é concessão do Estado a certos grupos de indivíduos, considerados merecedores dessa situação. O Direito, ao reconhecer capacidade formal e material às pessoas jurídicas, lhes confere também domicílio, nacionalidade, e patrimônio específico, distintos de seus integrantes.

Desses atributos, de grande importância é a autonomia patrimonial, que se configura como importante instrumento na motivação da iniciativa privada, e consequentemente, de promoção da economia de mercado, ao limitar, no exercício das atividades econômicas empresariais, as possibilidades de prejuízos pessoais de seus integrantes. Assim, em caso de insucesso nas atividades econômicas empreendidas, a responsabilidade patrimonial pelos atos e negócios jurídicos praticados pela pessoa jurídica está limitada ao seu patrimônio, não alcançando seus sócios ou administradores.

No entanto, se a lei confere autonomia patrimonial e personalidade distinta de seus membros à pessoa jurídica, essa deve cumprir seu objeto, sempre atendendo aos interesses sociais. Ocorre que, mesmo diante da exigência legal, alguns sócios se utilizam da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para alcançar fins ilícitos, ou, ao menos, diversos do objeto social, geralmente através de abusos e fraudes, em busca de benefício próprio em detrimento de interesses de terceiros ou do Estado.

Assim, a personalidade jurídica é prerrogativa conferida pelo Estado a certos entes morais, para que estes atinjam determinados fins, como o desenvolvimento econômico e social. De modo que, ao conceder à pessoa jurídica personalidade distinta de seus membros, o Estado permanece com o direito de verificar se a prerrogativa conferida está sendo utilizada devidamente.

Com isso, a personalidade jurídica pode ser considerada um direito relativo, vez que o juiz pode desconsiderá-la em casos de abuso e fraude, decidindo como se a pessoa jurídica não existisse, e respondendo os sócios pelos atos da pessoa jurídica com seu próprio patrimônio.

Se a personalidade jurídica é criação legal que tem por fim facilitar o exercício da atividade empresária, a sua desconsideração é a forma de adequar a pessoa jurídica aos fins para os quais a mesma foi criada, limitando e coibindo o uso indevido desse instituto.

Embora haja certa confusão terminológica na doutrina, vez que alguns autores fazem referência à despersonalização, em vez de desconsideração, entende-se que a segunda denominação é mais correta, vez que a disregard doctrine não extingue a pessoa jurídica, apenas estende os efeitos de determinadas obrigações sociais aos sócios e administradores, havendo uma suspensão momentânea da autonomia da pessoa jurídica.

Com a desconsideração, o afastamento da personalidade deve ser temporária e restrita aos atos fraudulentos ou praticados com abuso. Ressarcidos os prejuízos, a empresa deve continuar funcionando. A despersonalização, que tem caráter definitivo, somente se justificaria em situações extremas, havendo a própria extinção da personalidade jurídica.

Assim, a desconsideração poderá ter cabimento quando houver o abuso da pessoa jurídica, seja no exercício de direitos ou outras situações subjetivas de sócio (em geral a limitação da responsabilidade), ou na própria separação estabelecida entre a pessoa jurídica e seus membros, em que a referida separação é alegada em circunstâncias contrárias à função.

Às espécies de abuso correspondem as espécies de desconsideração. Assim, pode ocorrer desconsideração da limitação da responsabilidade, que ocorre quando, esgotados os bens da pessoa jurídica, passam a ser executados os bens dos sócios. Ou desconsideração da separação existente entre a pessoa jurídica e seus membros, quando há inversão na atribuição de direitos ou situações subjetivas do(s) sócio(s) ou da pessoa jurídica.

Além de casos, por exemplo, de decisões que determinam a penhora de bens de sócios em sociedades dissolvidas irregularmente, e penhora, por dívidas pessoais, de bens do sócio incorporados fraudulentamente ao patrimônio de pessoa jurídica.

É conveniente reiterar que o intuito da teoria da desconsideração é a preservação da pessoa jurídica e de sua autonomia, enquanto importante instrumento para o desenvolvimento econômico e social, sem que se deixe ao desabrigo terceiros prejudicados.

Com a utilização da teoria da desconsideração, é possível a repressão de fraudes e atos abusivos preservando os interesses da coletividade. De modo que é possível a continuidade da empresa, e a conseqüente preservação da produção, dos postos de trabalho e a arrecadação de tributos pelo Estado.

De modo que, se a previsão da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Código Civil representa a sua valorização pelo ordenamento, é importante não esquecer que tal mecanismo somente deve ter lugar nos casos que a pessoa jurídica servir de escudo para práticas irregulares, para que sua utilização não seja banalizada e descaracterize seu próprio fim, que é a proteção da pessoa jurídica.

Publicado originalmente em: Jornal Informante (Farroupilha – RS), v. 287 e v. 288, ago. 2013.

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